UMA CRÔNICA, UM CAFEZINHO E UM PÃOZINHO COM MANTEIGA
Em 1928, em Tabacaria, poema escrito através de seu heterônimo Álvaro de Campos, o grande Escritor Fernando Pessoa dizia:
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Normalmente, quando pensamos na concretização e realização de nossos sonhos imaginamos algo muito elaborado, difícil e bem distante de nós. Este não é o caso de J. R., um dependente químico que me pediu ajuda há alguns anos.
Seu maior desejo naquela época, além de interromper seu alcoolismo, era também o de conseguir acordar cedo, escovar os dentes, tomar banho e ainda, de cabelos molhados, ir até a padaria da esquina e comprar pãezinhos frescos.
Mas, se para nós este movimento pode parecer pequeno, simples e muito fácil de ser realizado, para ele era maior do que sua própria vida. Nas condições em que se encontrava isto era algo que fugia de sua triste realidade e do cativeiro em que se enclausurou em função do álcool.
Recordo-me com clareza de suas palavras em nosso primeiro encontro psicoterápico:
– Sabe Marília, o que eu mais quero é ter uma vida normal: acordar cedo, tomar banho e ainda com cabelos molhados ir até a padaria da esquina comprar pãezinhos frescos, sentar à mesa com minha família, escovar os dentes, me arrumar e sair para trabalhar.
Hoje, enquanto todos saem para este fim, eu estou “apagado”, sujo e de ressaca.
– “EU NÃO AGUENTO MAIS!”
Então, sugeri e orientei a J.R. em um primeiro momento passar por um processo de desintoxicação e após este procedimento realizar seu tratamento inicialmente em uma Comunidade Terapêutica.
J.R. aceitou minha sugestão e após receber alta da desintoxicação, tornou-se residente em uma Comunidade.
Assim que retornou, após 9 meses, J.R. me procurou novamente e demos início a sua psicoterapia, ingressando-se também em Alcoólicos Anônimos (A.A.).
Completando 1 (hum) ano de tratamento e recuperação, “limpo” e sóbrio, J.R. em sua sessão semanal, convidou-me para ir com ele e sua família até o seu grupo de A.A. para assistirmos a sua troca de “ficha”. Aceitei o convite, já que participei ativamente de seu tratamento psicoterápico. Entendi que para J.R. compartilhar este momento com ele seria muito importante até mesmo para o vínculo psicoterápico já bem estabelecido. E ainda, que este convite estava carregado de gratidão, não só por mim, mas principalmente por sua família que em nenhum momento desistiu de lutar junto a ele.
Após algumas breves palavras do coordenador do grupo, J.R. iniciou seu depoimento. Confesso que me emocionei ao ouvir cada palavra, cada frase que pronunciava em sua partilha. Ele finalmente havia concretizado o seu grande sonho:
“Levantar cedo, tomar banho e, ainda de cabelos molhados, caminhar até a padaria e comprar os seus pãezinhos”, e o melhor: “limpo”, sereno e sóbrio.
No final de sua fala, J.R., muito sensibilizado, convidou todos os presentes para celebrar seu “renascimento” com um superlanche oferecido por ele mesmo: PÃO COM MANTEIGA E UM CAFEZINHO.
Foi um momento muito bonito que me permiti vivenciar em minha caminhada profissional, e com toda certeza, está gravado e não sai mais de minha alma. Por isso eu o denominei como A PARTILHA DOS PÃES
