
Transformar o curso e o rumo de uma história que se vive há anos é um processo difícil e lento, eu sei. É como se precisássemos mudar para uma outra casa e ainda ter que trocar todos os móveis. Mudanças dão trabalho e não se limitam apenas em trocar de endereço. Num primeiro momento causa desorganização, a perda provisória de referências e até mesmo de algumas nuances da própria identidade. É como se despir por um tempo de velhos hábitos, podendo gerar um enorme vazio.
Às vezes, é preciso reescrever a própria história traçando novos caminhos, novas condutas e novos hábitos, como se escrevesse uma carta, onde destinatário e remetente sejam a mesma pessoa. É preciso inventariar o passado, abraçando o presente. No entanto, não é prudente esquecer da antiga moradia. Ainda que ela estivesse caindo, as boas lembranças merecem ser guardadas, e as ruins, olhadas com realismo. É preciso, contudo, acreditar que a nova casa, no devido tempo, vai se organizar, se mobiliar e seu jardim florescer, e com ele, a grande oportunidade de reaprender a viver e a se reinventar.
Infelizmente, nem todas as famílias codependentes estão preparadas para percorrerem este caminho. Resistem às necessárias mudanças assim que o dependente químico entra efetivamente no processo de recuperação. Emocionalmente adoecidas, comportam-se como se sentissem falta dos “problemas” que viviam junto ao dependente, em sua época de ativa, a qual já estavam de alguma forma “acostumadas” e “sabiam como lidar”. Optam por continuar sofrendo como verdadeiros mártires ou reféns de suas próprias doenças, persistindo no processo da dependência emocional.
E por mais incrível que possa parecer, essas famílias acabam por provocarem inconscientemente situações, onde o “seu” familiar dependente se desorganize, correndo o sério risco da recaída e de voltar assim a usar substâncias químicas. Se por um lado, sentem-se aliviadas por não terem que conviver mais com as pesadas consequências das drogas, por outro, não conseguem conviver com o vazio que se abre e experimentam.
Terence Williams, Conselheiro em dependência química em Hazelden Universidade de Minnesota, em seu Artigo “Livre para Amar”, aborda que é comum os codependentes passarem por um processo de luto e perda da mesma forma que um paciente terminal e seus familiares passam pela inevitável verdade da morte.
Mas, morte aqui nada tem a ver com o sentido literal da palavra. Enquanto para os pacientes terminais, a morte representa o fim de suas vidas e de todos os seus relacionamentos, já para os codependentes significa o fim de uma dinâmica familiar caótica e disfuncional. E que, por mais que possam ter sido vividas de forma triste, traumática e frustrante, passaram a representar um estilo de vida.
Em função disso, acreditam e insistem na tese que a dinâmica familiar está confusa apenas por causa das drogas focando o dependente químico como único responsável pela disfunção familiar. Esta é uma defesa inconsciente que encontram de se protegerem de um emaranhado de sentimentos confusos e obscuros que os perseguem. Portanto, o fim dos papéis adotados e vividos dentro desta dinâmica familiar doentia, representa um luto.
Um exemplo clássico e muito comum junto ao processo de recuperação do adicto é o daquela esposa que viveu intensamente o alcoolismo e/ou a drogadicção do marido, sofrendo todos os tipos de consequências que se pode imaginar, como vergonha, frustração, dor, maus tratos; e agora, vê o próprio marido saudável e feliz com sua sobriedade e recuperação, sendo admirado e elogiado por muitos.
Não é raro neste processo sentir-se preterida pelas pessoas, como se tivesse perdido sua própria identidade: a identidade de “mártir” que ela mesma criara junto ao seu círculo familiar e social. Por mais estranho que possa parecer o fato, é que, de alguma forma, sentia-se “reconhecida” e “recompensada” por esse longo período de sofrimento.
E agora, sem poder mais “culpar” o dependente por suas perdas e mazelas, tanto físicas como emocionais, passa a cobrar do mesmo todo o seu “tempo investido” e “sofrimento vivido”, de um jeito tão intenso que o adicto acaba por entrar num processo de vulnerabilidade, que nada mais faz do que fragilizar sua recuperação, correndo o risco iminente de uma recaída. E a cada passo que seu marido dá rumo à sobriedade e prosperidade, ela dá um passo para trás, não conseguindo seguir em frente junto a ele e nem se libertar de seus sombrios, dolorosos ressentimentos. Se não se propuser a lidar com tais res-sentimentos (sentimentos não resolvidos), amadurecendo e se “resgatando” através de sua própria recuperação, possivelmente criará uma série de obstáculos na caminhada do seu marido.
É preciso acreditar que uma mudança melhor está por vir, e que todos os envolvidos merecem e podem encontrar um novo estilo de vida junto aos que amam. Mas, para enfrentar este desafio é necessário deixar brotar, acima de tudo, a humildade. E, a cada dia, independente do caminho escolhido pelo dependente químico, buscar a tão almejada e merecida serenidade e sobriedade individual, e por consequência a familiar.
A recuperação é para toda a família, e todos devem “cantá-la” como se fosse um hino, onde cada nota represente um processo contínuo de amadurecimento e evolução, e não apenas como um evento ou um fim.
Para finalizar, desejo a todos uma feliz recuperação e que cada coração receba o suave toque da sobriedade.
Marília Teixeira Martins
Psicóloga